Meu pai não é branco, mas transparente com toda sua ausência, tem cabelo crespo. Minha mãe branca, e azeda em suas outras características, tem cabelo ondulado. Eu nasci com cabelo cacheado, volumoso, “armado”, cheio das misturas genéticas. Minha avó quem me criou tinha o cabelo liso como o afeto que escorria por seus dedos.
Quatro porta-trecos com gavetinhas ocupavam o banheiro. As doze gavetas separadas por cores cheias dos cacarecos capilares. Piranhas de borboletinha, xuxinhas de personagens, tic-tacs com glitter, entre tantas outras coisas que podiam segurar e enfeitar o cabelo de uma classe de terceira série todinha.
Se saíamos para passear no shopping eu não ganhava brinquedos, mas podia escolher qualquer acessório de cabelo que eu quisesse. Eles sempre iriam combinar com alguma roupa, sapato, bolsa enfim, a paleta de cores do look completo. Que eu não escolhia afinal criança não tem idade pra saber o que é bonito, e nem discernimento pra saber se vai passar vergonha na rua coletando olhares desaprovadores dos outros adultos.
Num geral adultos não aprovam cabelos cacheados, segundo minha avó. São rebeldes demais, e devem ser domados. Domados porque cabelo “armado” é feio. Feio porque dá uma conotação de desleixo, descuido. Até um quêzinho de loucura. E não queremos que os outros pensem nada disso. Nem de mim, nem dela. Então para evitar as negativas devemos sempre estar bem aos olhos dos outros e um cabelo cacheado só fica bem aos olhos dos outros preso. Em rabos de cavalo, uma trança, duas trancinhas, uma xuxinha em cada lado da cabeça… só o básico do dia-a-dia. Em hipótese alguma, solto.
Em raras ocasiões especiais, os cachos podem ser definidos quando enrolados com litros de creme. Um por um, nos dedos. Um trabalho manual que quanto maior o cabelo, maior o tempo. Então é melhor lavar duas vezes por semana, desembaraçar por quarenta minutos no banho e sentar para que vovó enrole no dedo por duas horas. Mas vale a pena, tudo pra ficar bonita para ela. Ou pelo menos para não ficar feia para os outros. Só vovó sabe cuidar do seu cabelo. Só vovó sabe o que é bom pra você.
Afinal eu era a bonequinha da vovó. Ela me pegou pra criar e era sua oportunidade de fazer diferente. Agora aposentada ela poderia estar 100% presente e fazer tudo do jeito que ela queria. Ela teria alguém que seria do jeitinho que ela quisesse, bem diferente de seus dois filhos, se Deus quisesse. Como é arrumadinha, toda combinando! Tão fofa, quase um bibelô. Uma pena que bonequinha de sangue e tripas não cabe na prateleira. Construir uma redoma deve ser caro, mas é melhor gastar dinheiro com esse monte de roupa e coisa pra cabelo. O mundo precisava ver como ela era bem sucedida em cuidar da netinha que a mãe e o pai abandonaram. Coitadinha.
Uma pena que boneca de músculos e dentinho separado cresce. Cresce dos lados, engorda. Tem vontade de fazer corte diferente no cabelo e botar cor igual as meninas que vê nos showzinhos de rock que começou a frequentar. Mas não dá. Seu cabelo é o cartão postal, você quer que deem risada de você na rua e apontem o quanto você vai ficar ridícula? Vovó sabe das coisas, principalmente sobre qual o conceito de beleza. Se já nasceu com cabelo assim e não tem jeito, melhor ouvir o que ela tem a dizer. Eu que nunca me achei bonequinha, sempre me sentia uma suzy entre barbies, ouvia. Claro, ela só quer o meu bem.
Uma pena que boneca que é gente cria opinião própria, bota dois neurônios pra funcionar e deixa de ser boneca. Se tornar alguém é uma bagunça. Primeiro o corpo fica estranho. O peito pula da roupa, mas decote é coisa de vagabunda então não pode. Vovó vai lá e costura todos os decotes das roupas enquanto eu saio pra me descobrir gente. A cara fica cheia de espinha. O dente foi arrumado porque separado é feio e eu não aguento mais sofrer bullying. Depois o que fica estranho é dentro da cabeça da gente. Inevitável se comparar. Como vou equilibrar as vozes da minha cabeça, com as da minha avó e das pessoas do mundo lá fora? Não equilibrando. É mais fácil ceder pras vozes da minha avó. Ela quem manda. Ela quem paga. Ela quem sabe.
Claro que no processo de me tornar gente, eu queria me encaixar. Mas por mais que eu tentasse, não parecia rolar em diversos aspectos. Alisei meu cabelo umas três vezes. Me senti horrível. Feia, rosto comprido. O cabelo batia na bunda alisado, mostrando o loiro escondido no cacho. Demorou três horas pra ficar daquele jeito. Não gostei, faço o quê? Não dá pra nascer de novo. Só cabelo liso pode ter corte diferente. Se eu passar tinta vai cair e desbotar e vão rir de mim. Cabelo preso já não combina mais e não deixa eu ter franja pra esconder meu rosto. Ah, deixa assim, vida que segue.
Quando já era gente vovó dizia pra deixar o cabelo natural, afinal ficava tão bonito. Oi? Ué, ela sempre me disse o contrário. Ainda não sentia segurança, até que nessa caminhada da vida fui ganhando independência. A independência sempre foi meu sonho, mas veio em doses homeopáticas. Foi vindo primeiro das vozes da minha cabeça e fui entendendo que vovó não sabia tanto sobre o que era bom pra mim assim. Nem gostava tanto de mim assim. Que seu amor na verdade tinha outro nome.
Aprendi a enrolar o cabelo sozinha, pedi pra vovó parar. Deixa comigo que eu consigo! E a reação dela foi a pior possível. E daí foi ladeira abaixo pelo resto das nossas vidas. Como eu ousava não precisar mais dela pra lidar com meu próprio cabelo? Eu tinha capacidade de deixar tão bonito quanto ela conseguia? Tão arrumado?
Logo após esse aprendizado e algumas fichas começarem a cair, fui morar sozinha a primeira vez e resolvi dar liberdade pro meu cabelinho. Parei de passar duas horas enrolando ele no dedo pra parecer comportado. Afinal nem eu tinha tanta fama de comportada assim, como vovó gostaria que eu tivesse… ela só não sabia e nem conhecia a pessoa que fui me tornando. Na verdade ela não queria conhecer, pois detestava que cada vez mais eu me afastava de ser a bonequinha que ela cultivou. E fazia questão de repetir que gostava mais de mim na época que eu era criança. Faz sentido.
Andando com o cabelo “Elba vibes” por aí, fui aprendendo. Cabelo cacheado é assim: tu gasta com um monte de creme. Acorda com ele lindo quando vai ficar em casa. Arruma e ele fica horrível quando vai sair pra beijar na boca. O frizz é indomável em dias de chuva. Os nós quebram os dentes dos pentes baratinhos que são substituídos a cada três meses por ficarem banguelos e inúteis. Ninguém sabe cortar cabelo cacheado na cidade pequena. Na verdade enquanto morava em Bauru nem sabia que existia especialista em cabelo cacheado. Já que ninguém sabe mexer, eu também não mexo. Deixo ele assim. Nos dias bons tiro umas fotinhos, nos dias ruins finjo que não percebo que ele está caótico e sigo o baile.
O próximo passo foi de 420 quilômetros de distância. Depois de um ano na cidade grande, fui me aproximando ainda mais de mim. E com o volume quase mutado da voz da minha avó na minha cabeça e livre de uma ou outra amarra social, decidi ousar no cabelinho. Chega dessa bagunça, vou cortar ele no ombro. Ele nunca esteve tão curto. A reação das pessoas foi de pura surpresa. Nunca imaginavam, o cabelo era meu marco. O diferencial. Fiquei mais nova, mais leve. Bacana, mas era tão bonito comprido…
O tempo e a terapia fizeram organizaram informações e vivências dentro da minha cabeça e do meu coraçãozinho. A relação com minha avó me adoecia, mesmo de longe. Coisas absurdas aconteciam e eu queria me ver cada vez mais livre dela e tudo que me machucava. Eu tentava mas não conseguia. Do lado de cá, as alegrias que vivia me mostravam que eu podia ser feliz sozinha, sendo eu. Cortei ainda mais o cabelo, fiz mecha rosa. Depois vermelha. Não sei passei vergonha ou virei chacota, pelo menos ninguém nunca me disse nada. Na cidade grande ninguém parece ligar. As profecias ditadas pela vovó não se concretizavam, então raspei um lado do cabelinho. Comprei uma máquina pra manter o corte em casa.
Até que uma gota d’água me transbordou em mágoa e dor. Quanto mais independência eu tinha, pior ficava a relação. De um lado eu cada vez mais feliz com a pessoa que me fui me construindo e isso causando mais destruição do outro. Como o fato de eu simplesmente existir, sem prejudicar ninguém, podia causar tanto ódio e repúdio no outro? Como alguém que dizia me amar tanto podia deliberadamente fazer coisas pra me prejudicar só porque já não podia me controlar mais em nenhum aspecto? Ficou claro que a distância física por si, não era suficiente. Eu precisava cortar o fiapinho que desequilibrava tudo: o vínculo pela raíz. Tomei a decisão e não contei pra nenhum dos envolvidos.
Voltei pro covil onde minha prateleira continuava me aguardando em meio de tanta poeira e teias de aranha, provando que o tempo chega para todos mas algumas coisas nunca mudam. Olhei pra ela e deixei coisas lá. Coisas que não me pertenciam mais, que não faziam mais sentido. Fiz um despejo e falei tchau, dizendo que não sabia quando voltaria. Minha idéia era nunca mais voltar. Era fingir de morta, ocupada demais pra olhar pra essa parte da minha vida e da minha história. Pra eu seguir, a prateleira, a vovó e o cabelinho precisavam ficar pra trás.
E assim que eu voltei, raspei tudo. Deixei os cachos no chão de um apartamento em São Paulo. Cortei o fio familiar. Cortei todos os fios que representavam tantas coisas que me deixavam presa, que apertavam, comparavam, humilhavam, xingavam, que não pertenciam a mim. Marquei o momento, me vi livre. Me vi sem cabelo, mas vi a versão mais autêntica de mim em toda minha vida. Eu por mim fazia sentido. Me tornei mais gente que nunca. Cheia de coisas boas, defeitos, derrotas e vitórias. Eu me bastaria sem as vozes, sem cabelo, sem tentar encaixar me sentindo uma esquisita. Sem o cabelinho, sem família, nada me impediria de ser eu. Não há prateleira no mundo que me detenha mais. Eu prefiro passar vergonha, virar chacota, ser rejeitada, não performar feminilidade o suficiente. Portanto que eu seja fiel a mim, não há gosto amargo na boca que me faça voltar pra uma Natália que não existe mais.
Hoje a maioria das pessoas que fazem parte da minha vida, já me conheceram careca. Quando mostro foto da minha época cabeluda, elas se surpreendem. Há quem diga que não faz sentido nenhum, e a careca combina muito mais com a minha personalidade. Há quem ecoe “mas era tão bonito” e me incentiva a deixá-lo crescer.
Vovó morreu. Enquanto estava doente, quebrei minha promessa comigo e voltei para me despedir enquanto seu final não chegava. Ela me viu de cabelo raspado e disse que eu era bonita de qualquer jeito. Que estava bom assim, que ela gostou dessa versão. Pra minha surpresa... Será que doente e prevendo o fim, ela finalmente amoleceu? Será que ela finalmente entendeu que eu não era mais criança e eu nunca mais voltaria pra sua prateleira? Mesmo insistindo por mais de 30 anos, só a beira da morte a ficha dela caiu? Não sei, nunca nem vou saber. Por muito tempo achei que viveria na sua sombra e a servindo como retribuição por ter me criado quando ninguém quis assumir o B.O. do meu nascimento. A gratidão pra ela viria em forma de servidão, de passividade, de ser como ela queria que eu fosse. Ainda bem que eu não fui. Já teria tirado minha própria vida se tivesse seguido esse caminho. Ainda bem que me encontrei. Ir de encontro a mim foi o que me salvou.
Não vou dizer que tenho a autoestima blindada. Às vezes olho fotos do passado e me acho mais bonita ali. Raspo meu cabelo semana sim, semana não. Achei que nunca mais ia beijar na boca depois de careca. Algumas amigas me dizem que não é todo mundo que banca um cabelo raspado e que isso já traz beleza o suficiente pra mesa. Tem dias que acredito, olho no espelho e sinto orgulho. Tem outros que penso que, agora que o cabelo não é mais um meio de controle e de opressão, talvez eu devesse dar uma chance e ser uma cabeluda livre. Mas tenho medo da fase meio termo, meio bozo que sei que vai ficar horrível e só de imaginar já desisto da ideia e raspo de novo. Não sei o que vai ser do meu cabelinho ou da falta dele no futuro. Mas essa é a história dele e da nossa relação até aqui. Diferente do que a maioria pensa: não raspei porque surtei na pandemia. Se raspar cabelo fosse sinônimo de surto, eu já teria nascido careca.
Ser careca é bom demais, além de prático. Se você precisava só de um empurrãozinho pra raspar a cabeça aí também… fica aqui meu incentivo. Se precisar até seguro na sua mão rs
I Am: Celine Dion um por trás das cenas da descoberta da doença da cantora e como isso afetou sua vida e sua carreira. Celine é uma força. Música em todos os seus poros. Triste lidar com as rasteiras da vida, mas a gata segue esperançosa. Uma lenda.
In a Violent Nature prometeu muito e entregou pouco. Acompanha o ponto de vista de um assassino em sua busca por sangue e matança desenfreada. Chato. Se tivesse apelado só pro gore, podreira e loucura teria sido pelo menos bom rs
We’re All Going to the World’s Fair mostra uma adolescente participando de um jogo online porém as coisas começam a ficar confusas. Fala sobre muitas coisas de uma maneira bem diferente. Então em suas entrelinhas, é bem mais profundo do que aparenta. É ótimo mas não acho que todo mundo vai gostar rs
What You Wish For foi a grata surpresa da semana, assisti sem saber NADA nem sinopse e adorei. Melhorou a experiência. Um chef com vício em apostas foge pra América Latina e encontra um amigo de faculdade mas… Eita rapaz, bom demais! Nick Stahl merece maior reconhecimento, um anjo.
The Boy and the Heron lindo, triste e sensível como todo filme do Miyazaki consegue ser. Sempre fico hipnotizada pelos detalhes e a estética. Durante a segunda guerra, após a morte da sua mãe, um garoto se muda com o pai para o interior e enquanto tenta se ajustar a nova vida e família, coisas acontecem.
Space Monkeys chato, mais do mesmo. Um bando de adolescente TONTO começa a fazer jogos numa mansão até que tudo passa dos limites. Previsível, irritante, parece eterno de tão tosco. Nem passe perto rs
In a Fishbowl depois de um acidente uma mulher acorda em uma clínica sem ninguém e nem memória. Achei confuso e pretensioso, chato onde nada funciona. Tipo um projeto de conclusão de curso que alguém passa com a nota na média mas não aceita e leva o projeto pra frente rs
Legend tem Tom Hardy em dobro. Gêmeos usam violência numa Londres anos 60 pra conseguir o que querem pois são gangstersssss enquanto um detetive está em seu encalço. Puts tanto potencial mas tão mediano. Um deles namora o aron egerton e não rola nem um mísero beijinho. Meh
É tão verdadeiro que você conta para a gente a imagem da sua avó, que se modifica no texto conforme sua visão conseguiu de fato ir vendo-a sem filtros. E como é libertador e doloroso e novamente libertador perder esse filtro.
Amiga, cada texto seu é um pouquinho de conhecimento de uma pessoa incrível. E embora você já tenha ouvido isso centenas de vezes, você é maravilhosa.