Desculpa o desabafo.
Morte sempre foi um assunto que eu trabalhei muito com as pessoas que eu atendo. Quando era professora, tinha uma aula específica sobre morte para preparar meus alunos da área da saúde. E como qualquer pessoa viva, a morte sempre esteve ao meu redor. É um tópico que precisa ser naturalizado e discutido e fazer parte da nossa vivência. Minha avó morreu ontem, e como ela já apareceu por diversas edições dessa newsletter, nada mais justo que usar esse evento pra mostrar que existem muitas outras perdas que nos impactam mais do que uma pessoa falecer.
Dona Reny me criou desde que eu nasci e se certificou que eu não me esquecesse disso. Usando frases como “se eu não tivesse pego você pra criar, só Deus sabe que tipo de vida você teria” ou “eu faço tudo por você, não há outra pessoa que você possa contar no mundo além de mim”. Juntando isso com eu ter assistido a novela Chiquititas, quando criança criei por um período, um medo ENORME de que ela morresse. Eu iria pra um orfanato? Moraria na rua? O que seria da minha vida? Ela era minha avó, eu sabia que ela ia morrer primeiro, mas quando?
Tirando esse medo, ela realmente foi uma boa provedora na minha infância. Não me faltou nada… material. Ela me mimava e me tratava como uma boneca, escolhendo minhas roupas e penteando meu cabelo. Deixou eu almoçar apenas nuggets por anos a fio. E eu nunca apanhei… fisicamente.
A partir da minha adolescência as coisas foram se transformando. As falas passaram a ser de cobrança de uma dívida eterna. Já que ela me criava e botava comida no meu prato, eu deveria estar sempre à sua disposição. Quando a coisa apertasse, eu é quem deveria cuidar dela. Era uma troca. Injusta e irreal.
Crescer faz com que passamos a enxergar o mundo com os nossos olhos e não apenas o dos nossos cuidadores. Tudo o que eu acreditava e tinha como valor, era o oposto do que eu vivia na minha casa. Uma pessoa racista, machista, homofóbica, que sempre tinha um comentário ruim sobre a vida e o corpo do outro. E claro do meu. Ela passou a ser a clássica mão que afaga e que pune.
Ela costurava os decotes de todas as minhas roupas. Jogava fora escondida, as peças que não gostava.
Cobrava que eu fosse magra para que um dia alguém gostasse de mim. Arrumava meu cabelo para não parecer “louca” na rua. Afinal cabelo armado é sinal de desleixo.
Sempre se preocupava com o que os outros iriam pensar dela se me vissem beijando alguém por aí.
Questionava todas as minhas amizades. Minha escolha profissional. Minhas roupas, minha comida, meus horários. Tudo. Nada nunca esteve bom.
Quanto mais eu fui tomando controle da minha vida, mais nossa relação foi deteriorando. Ela dizia que se morresse seria por minha culpa, por tanto nervoso que eu fazia ela passar. E o nervoso às vezes era porque eu precisava fazer as minhas coisas e não podia levá-la ao mercado naquele exato momento. (mesmo que ela tivesse o próprio carro, tempo e dinheiro)
Se eu não fizesse o que ela queria, do jeito que ela queria, na hora que ela queria significava que eu era ingrata e não a valorizava. “Você vai ver o dia que eu morrer, aí sim você vai me dar valor e sentir minha falta”. E então passava meses sem olhar na minha cara dentro de casa. “Você é a maior decepção da minha vida, não te criei pra ser assim”.
O azedume que foi ficando cada vez mais insustentável, me trouxe diversos conflitos internos. Eu tinha prometido que só sairia da casa dela quando ela morresse. Que cuidaria dela e faria de tudo que tivesse ao meu alcance pra pagar minha dívida. Mas cada minuto de convivência foi me matando por dentro. Eu a amava e a odiava. Desejava que morresse e sentia culpa. E cada situação que me prendia, me fazia considerar o su*cidio uma opção cada vez mais atraente. Se eu não me livrasse desse relacionamento, eu é quem iria morrer antes. Eu mal tinha começado a minha vida. Não tinha uma profissão, não tinha rede de apoio, não tinha nada. Era muito injusto eu morrer porque não era quem minha avó queria que eu fosse. “Eu gostava mais de você quando era criança” porque quando eu era criança ela me controlava totalmente, eu não enxergava seus defeitos e não tinha valores/desejos/planos que eram realmente meus.
Reconheço que sem ela eu não teria feito faculdade. Não teria privilégios de acesso à cultura, educação de qualidade, lazer etc. E já que a partir de um momento suas palavras não tinham mais o efeito que queria, ela usou da minha dependência financeira para me controlar. Fazia ameaças. Deu uma parte da minha poupança (que eu recebia pensão do divórcio dos meus pais) para o filho dela que me odiava e a colocava contra mim. Quando eu arranjava um emprego ela dizia ser “abaixo”. "Fez cinco anos de faculdade pra uma merda dessa?”, “pede as contas, você não vai durar”. Ou que a dificuldade de ter estabilidade financeira é completamente culpa minha por ter tatuagens.
Quando acabei a faculdade eu ainda recebia pensão do meu pai e usei esse dinheiro pra morar sozinha a primeira vez. Ela me disse que tudo daria errado, que eu poderia pedir ajuda pra ela rastejando e morrendo de fome mas ela nunca me daria um nada simplesmente pelo fato de escolher sair de casa. Porque se eu continuasse na casa dela, eu teria tudo. Menos paz e saúde mental. E mesmo assim eu fui e ela fez questão de espalhar pra todos que conhecíamos que eu havia abandonado ela e que não me importava. Mesmo que todos os dias eu fazia companhia pra ela na hora do almoço e ainda era chofer e secretária que fazia tudo nas minhas horas vagas.
Sair de casa não funcionou. Tive que voltar porque perdi o apartamento pra uma tempestade. A relação piorou. Arranjei um emprego em Santo André, mas voltava todo mês pra fazer as coisas pra ela. Não adiantou. Falávamos por ligação toda semana. Não adiantou.
Quanto mais eu tomava as rédeas da minha vida mais nossa relação piorava.
Se eu mostrasse que as coisas estavam indo bem, mais nossa relação piorava.
Quanto menos eu dependia dela pra qualquer coisa, mais nossa relação piorava.
Quanto mais eu me aproximava de mim, mais nossa relação piorava.
Então ao longo dos anos eu passei por um luto gigante da imagem que eu tinha da minha avó. Ela era o amor da minha vida quando eu era criança, a única unidade de família que eu tinha. Ter maturidade tirou ela do pedestal que eu mesma havia colocado (ou que ela havia implantado na minha cabeça). Eu demorei anos pra entender que o amor dela vinha com um preço. Que a convivência e a paz eram ilusões moldadas em muita culpa, manipulação emocional e controle. E que ao seu lado, eu nunca seria livre e muito menos feliz. E isso me entristecia. Eu vivi um luto da sua imagem e do conceito de família. Nunca tive seu interesse, seu suporte real e sua participação como alguém de apoio. Tive que entender que seu conceito de amor era posse e doentio, diferente do que eu queria e precisava. Carinho pra ela era me dar algo que eu pedisse. Era não deixar faltar comida ou simplesmente: ter me pegado pra criar porque ninguém quis.
Quando ela era o centro da minha vida eu achava que não aguentaria sua morte. Que eu morreria junto com ela. Que eu não teria mais norte. Que eu sofreria tanto e sofreria sozinha, pois eu não teria mais ninguém. E isso era reforçado verbalmente com muita frequência por ela. E eu respondia: “sabe o que vai acontecer quando a senhora morrer? eu vou seguir com a minha vida, porque eu vou continuar aqui. Vou ficar triste, mas nada vai parar por sua causa”. E isso fazia ela ficar ainda mais revoltada e me xingar ainda mais. E ontem ela morreu e eu continuei a minha vida. Não chorei. Não parei de trabalhar. Dormi 8 horas de sono completas. Nada mudou.
Nada mudou porque por décadas eu tive que mudar sozinha. Passar por tudo isso sozinha e me sentir cada vez mais sozinha. Porque as pessoas santificavam ela. Mas ela é praticamente sua mãe. Ela te pegou pra criar. Você deve. Não seja assim, seja assado. Ela te dá tudo, é tão boa pra você. Ninguém acreditava em mim porque ela era uma senhorinha simpática. Eu sempre fui a vilã da história.
De uns anos pra cá eu cortei o máximo de relações que eu pude. Conversava ao telefone uma vez a cada três meses e visitava uma vez por ano. Depois de sofrer um golpe do próprio filho (que ela fez questão de dar várias vezes, dinheiro que era meu pra ele), ela passou a adoecer rápido. Ele é seu filho preferido. O bolsominio, pai de família tradicional brasileira que roubou amigos, roubou ela e outras parentes (eu inclusa), recebia ameaça de morte de traficante porque estava devendo, etc etc. Ela o amava mais que qualquer um, e quando foi confrontada com ele arruinando sua vida, ela desistiu. Além de se afundar na depressão seu estilo de vida e escolhas a levaram pra uma demência senil. Minha mãe (um caso a parte), retornou das cinzas como uma fênix após sete anos desaparecida e assumiu o B.O. de cuidar dela e de suas coisas. Em menos de um ano a saúde dela deteriorou cada vez mais rápido e nas últimas semanas ela pegou uma infecção hospitalar sendo segurada por morfina e oxigênio. Sua filha me mandou um áudio de três segundos “sua avó morreu tá”. Tá bom.
A última vez que a vi, em dezembro, já dependia de cuidadora e estava mais repetitiva que nunca. Dessa vez dizendo que me amava e para minha surpresa elogiando meu cabelo raspado, que eu ficava linda de qualquer jeito. (vem aí uma edição só sobre o cabelo rs) Que eu era sua filha e ela me amava e sentia minha falta. De novo, em lágrimas. Ali eu soube que seria nossa última vez e como não tenho forças há anos para confrontos só respondi que também a amava. Brigar nunca valeu a pena. Lutar por justiça também não. Mas ela só conseguiu dizer que me amava genuinamente quando ficou debilitada.
Tudo poderia ter sido diferente, mas não foi. Essa foi a família que eu nasci caindo de paraquedas. Como qualquer humano, ela não foi 100% boa e nem 100% ruim. Agora não é a hora de santificá-la. As pessoas se incomodam muito quando falamos que não gostamos de nossa família ou nossos progenitores, mas o famoso: só quem vive sabe.
Hoje com a morte dela, o cenário é bem diferente do que imaginei. Não estou sozinha, tenho mais apoio do que nunca. Apoio de amizades e pessoas que genuinamente querem meu bem e estão dispostas a me ajudar se eu precisar. Eu me sinto livre, digna de afeto, mais próxima de mim. Eu consigo, nas minhas amizades, nutrir todo o afeto que me faltou em casa. Sou grata a seja lá o que for, por não depender mais de nenhuma amarra familiar. Seja dinheiro, conceitos tradicionalistas ou qualquer merda do tipo. E eu não vou me culpar por não estar chorando a gritos e soluções, rastejando parede abaixo como nas novelas e filmes por aí. Eu passei todo o luto em vida. Eu fiz o que pude (e fiz além). Eu estou em paz e grata por estar viva.
A morte vem pra colocar em perspectiva a vida de quem fica. Quero seguir escrevendo minha história da melhor maneira possível pra mim. A vida é muito curta pra viver na sombra dos nossos traumas. Tô bem, bora fazendo.
But I’m A Cheerleader e uma farofada lgbt maravilhosa. Uma líder de torcida padrãozinha é colocada num centro de “redirecionamento sexual” porque sua família desconfia que ela é lésbica e é melhor “consertar” isso logo. Vale assistir porque Rupaul Charles é o “Coach ex-gay”.
El Conde tosco. Pinochet nunca morreu e virou vampiro e sua família só quer saber do seu dinheiro. Achei que teria crítica social foda e tive nonsense chato. Me deu vergonha alheia demais.
Strait-Jacket é um ícone na carreira da Joan Crawford! Uma mulher encontra o marido na cama com uma amante e decapita ambos com um machado. Presa por 20 anos, retorna à vida de sua filha Carol. Bom demais!
Excision chato. Uma adolescente esquisitona tem o sonho de perder a virgindade e se tornar cirurgiã. Mas não tem as habilidades sociais pra nenhuma das coisas.
Que Nadie Duerma acompanha uma programadora que perde o emprego e se torna taxista. Nessa nova fase da vida vai se descobrindo, até que coisas acontecem e… Muito bom! Criativo, surpreendente. Um Taxi Driver para mulheres cansadas das injustiça do mundo.
They/Them é ruim que dói. Um acampamento de conversão LGBT tortura os jovens até que mortes misteriosas começam a acontecer. Achei que seria um slasher bacana mas é horrível e idefensável.
The Zone of Interest acompanha uma família de n*zis em Auschwitz vivendo a vida dos sonhos. Um retrato criativo sobre a banalização da maldade e mais atual do que nunca. Impactada.
La Abuela mostra uma modelo que larga tudo para ir cuidar da sua avó enferma até que coisas começam a acontecer. Bizarro na medida certa e um final muito bacana. Paco Plaza pouco erra.
A Nightmare on Elm Street 4: The Dream Master meio pombo com o retorno DE NOVO de Freddy Krueger em busca de se livrar dos últimos jovens de Elm Street. Legal, nada demais. Já durou muito já rsrsrs
Don’t Breath 2 chato. Escondido por anos cuidando de uma menina que resgatou, nosso protagonista é de novo incomodado por gente chata. Nem coreografias de luta salvaram esse aqui.
Ginger Snaps um ícone adolescente! Duas irmãs são obcecadas por morte e gore e uma delas é mordida por uma criatura bem no seu primeiro dia de menstruação. Maravilhoso pra falar de amadurecimento e os horrores de ser uma adolescente.
Perfect Life acompanha a vida de diferentes amigas adultas e suas questões com casamento, maternidade, amizade entre outras. Muito bom nas representatividades e um pouco fraco de roteiro.
Miracle Workers a quarta temporada mescla diversos sci-fis e é só comédia pastelão escrachada. Divertido pra passar o tempo.
Somebody Somewhere série linda e isenta de defeitos. A segunda temporada tão boa quanto a primeira, um cristalzinho incompreendido, conte comigo pra tudo.
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Eu sinto muito, minha amiga. Espero que você esteja cada dia melhor e toma aqui um abraço virtual.
Sinto muito que tenha passado por tudo isso, Nat! Sua avó tinha limitações que não a permitiam enxergar a pessoa incrível que você sempre foi, mas outras pessoas ao seu redor enxergam isso e te amam demais! Fique bem, sinta meu abraço!