Às vezes eu tinha a oportunidade de acordar às 10h, mas minha avó abria a porta do quarto e me perguntava o que eu iria querer de almoço naquele dia. Sonolenta, tentava responder que não importava agora, eu só queria dormir e poderia me virar depois. Ela respondia com alguma ofensa, provavelmente me chamando de grossa, batia a porta e saía com o intuito de repetir a pergunta mais tarde.
Em um dos auges da insalubridade, chegamos a morar em quatro. Ela, seus dois filhos e eu. Eles sempre se comunicaram numa base de não sei quantos decibéis, que sempre me pareceram “além do normal”. As brigas eram na base do grito. As conversas amenas e em “bom humor” também. As TV’s em volumes altos suficiente para se ouvir lá da calçada.
Na tentativa de ser uma jovem com vida social ativa, topava qualquer convite. Tivemos a época de churrascos na casa do meu primo. Os showzinhos na falecida UnderRock. Os barzinhos com música ao vivo que não deixavam uma conversa fluir. E por fim, as festas de república.
Onde há gente (e principalmente juventude) há barulho. Nem sempre tive a alma de uma idosa e também reverberei o quanto pude. A risada alta que incomodava. Dançar em qualquer lugar que desse vontade. Gritar com a TV porque empaquei mais uma vez em alguma fase do próximo jogo de interesse.
Por mais que emitisse meus sons, nunca achei que eles eram altos o suficiente. Me sentia um zumbido perto de tanto alarde. A vida acontece e caleja a gente. Quanto mais calos eu criava, mais incomodada eu ficava com barulhos que nem pareciam tão altos assim.
Como quando namorei o pianista que era ótimo em deixar o volume do teclado alto, mas veio silencioso tentar me est* enquanto assistia filme na casa dele. Ou o esquerdomacho seguinte que era ótimo em arrancar piadas e risos das pessoas, mas socava a parede e tacava objetos pelo ar enquanto gritava comigo. Ouvia calada ele se bater pensando que talvez logo, aquele barulho de mão poderia ser no meu rosto.
Liberta desses ruídos horríveis, me vi cercada de outros barulhos em São Paulo. Aqui tem sempre um prédio sendo construído por perto, ou uma obra em cima da sua cabeça. Buzinas. Aqueles barulhos típicos das “cidades que nunca dormem”. Mas pra mim, é como um silêncio.
Passei a valorizar o silêncio da minha liberdade. Ouço, em boa parte calada, as pessoas no meu trabalho. Falo pouco, o necessário. Quando tiro os fones, mantenho assim. Gosto de sair e me divertir com meus amigos. Se recebo gente em casa, coloco minha playlist “am I gay enough?” e aproveito.
Como não sou mais jovem, os sons do passado já não me apetecem tanto. Não gosto de balada (mesmo às vezes sentindo falta de sair pra dançar). Detesto barzinho com música ao vivo, afinal eu quero conversar em tom normal e não na base do grito. O volume da minha TV é sempre no nível “audível”. Troquei meu fone pelo de condução óssea porque não quero ficar surda tão cedo.
As pessoas parecem vir acompanhadas dos seus barulhos particulares. Tem gente que bota música quando acorda e só desliga pra dormir. Tem gente que bota música pra dormir e desliga quando acorda. Já morei com quem deixava o youtube na caixinha de som pela cozinha no momento em que eu botava a cabeça no travesseiro.
Os gritos ofensivos da minha avó passaram para ligações gritadas. Hoje ela não consegue me ligar mais. Dopada pela medicação pra demência e a progressão da doença, é provável que eu nunca mais ouça sua voz. Ela vem se tornando silêncio.
Envolta no barulho alheio, hoje pareço não saber qual é o meu. Com meus dois cachorros em casa, meu barulho preferido é o “tec tec tec” das patinhas pra lá e pra cá. Gunter, o mais novo, é o alarme do corredor. Cada vez que alguém passa lá fora, ele late. Um dia encontrei minha vizinha de porta e perguntei se o barulho deles atrapalhava, se era insuportável. Ela me respondeu que não, que só ouvia ele latir muito de vez em quando mas que não se importava. “Onde tem barulho tem vida. É bom que tenha barulho na sua casa.”
Fazer barulho pra existir. Pra impor nossos limites. Dizer em voz alta aquilo que queremos. O que não queremos. Compartilhar a dor pra tirar do peito e materializar as vozes da nossa cabeça, pra doer menos. Pra dar um conselho. Resolver um problema. Chorar de frustração, soluçar alto de tristeza, gritar no travesseiro de raiva. Vida. A mesma vida que caleja, que cansa. Ando cansada dos meus barulhos. De pedir o mínimo. De tentar resolver os mesmo problemas. De patinar e não me sentir ouvida. Sentir que meu barulho é um eco, um zumbido que passa despercebido. E isso me faz buscar o silêncio.
Eu amo o silêncio, mas tenho medo de perder a mão. Talvez eu preciso redescobrir meus barulhos. Fico me perguntando a quais barulhos as pessoas que me conhecem, me associam hoje. Pra onde eles foram?
A gente acostuma com o barulho das pessoas, difícil é conviver com seus silêncios.
Perfect Days é isso… perfeito! Um homem que trabalha limpando banheiros em Tóquio tem um rotina estruturada e simples, acompanhada de fitas de rock e livros antes de dormir. Sua paixão por coisas simples são mostradas em detalhes belíssimos. Simplesmente maravilhoso.
A Thousand and One injustiçado e esnobado pelas premiações e sabemos bem o porque. Uma mãe recém saída da prisão tenta compensar o “tempo perdido” com seu filho. O filme acompanha os anos seguintes e a complexa relação e revelações que são tapas na cara. Filme ótimo e muito dolorido.
Onibaba é clássico e por um(3) motivo: ser excelente pela maneira de contar uma história, fazer crítica e impactar a cultura japonesa! Uma mulher e sua nora sobrevivem nos campos matando samurais. A nora se envolve com um vizinho desaprovado pela sogra que tenta sabotar essa relação. Ótimo jogo de luz, cenas e diálogos. No final eu quis gritar: THIS IS CINEMA!
Tolkien mostra parte da vida do escritor e suas amizades. O quanto suas relações influenciaram em sua escrita. Mas é fraquíssimo. Tenta dar um toque de emoção mas falha. Cenas bonitas não salvam roteiro ruim.
Run Rabbit Run é bom, mas poderia ser melhor. Uma mulher tenta entender o comportamento estranho da sua filha ao mesmo tempo que precisa confrontar seu próprio passado. Uma terapia vai bem, obrigada.
All of Us Strangers me deixou em depressão profunda. Maravilhoso. Um escritor começa a se relacionar com seu vizinho e assim mostrando cada vez um pouco mais do seu luto por seus pais, sua dor e solidão. Nunca mais serei capaz de expressar um sorriso no meu rosto. Indispensável!
Terminei as três temporadas de Mythic Quest e me diverti! Achei que seria pombo, mas faz boas críticas. Ideal pra galera de TI e quem gosta de jogos num geral.
Também acabei a minisérie Roar e foi um ótimo achado! Com episódios independentes e sempre protagonizados por mulheres, mistura ficção, terror e dores da vida real de uma maneira maravilhosa. Recomendo demais.
A primeira temporada de Loot fala que milionários não deveriam existir e só por isso já vale o view! Fora um elenco ótimo, protagonismo trans e abordar muitas outras questões importantes de uma maneira leve e crítica ao mesmo tempo. Quero a segunda!
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