Tento falar por telefone com minha avó uma vez ao mês. Apesar de tudo o que ela me fez, foi ela quem me criou e talvez aquele senso de dívida implantado no fundo do meu coração (por ela) realmente ainda exista. Esse ano ela fez 83. Nessa última ligação ela disse que estava tudo bem, apesar de se revoltar apenas com uma questão: ela não lembrava que seu marido estava morto. Por vezes achava que ele tinha ido embora e abandonado ela. Perguntava pra filha quando ele iria voltar porque já estava tarde. Onde ele estava? Morto e enterrado no mesmo lugar faz 20 anos.
Ele morreu em casa de infarto fulminante. Tinha um cateterismo pra fazer mas disse que ia esperar até voltar da pescaria anual. Ele nem chegou a ir. Mesmo com exames em dia, ela diz esquecer desse fato. Pode ser uma demência senil ou pode ser uma sequela de um estresse gravíssimo que ela passou, que é um episódio da novela mexicana chamado Minha Vida que vai ficar pra outro dia. Por um lado isso me assustou e me deixou uma sensação horrível da iminência da morte, como se estivesse mais próxima do que nunca. Já a filha dela disse que a bicha tem muito o que viver ainda, ela é forte.
Eu já deveria estar acostumada com esse tipo de cenário. Por anos trabalhei com pessoas com doenças neurodegenerativas de diversos graus, manifestadas de diversas maneiras. Pessoas que esqueciam que estavam em suas casas. Esqueciam o rosto dos filhos. Chamavam aos berros por suas mães, mortas a décadas. Pessoas que não reconheciam seu próprio rosto envelhecido no espelho. Que ainda acreditavam estar em seus 30 anos, mesmo passando dos 80.
A memória é um troço interessante. É nela que guardamos tanta coisa e a principal, quem somos. Somos o que somos com base no que passamos, no que sentimos, no que interpretamos daquilo que nos acontece todos os dias pela vida toda. Mas não dá pra lembrar de tudo, o cérebro não tem essa capacidade. Ele precisa jogar informação fora pra armazenar informação nova a cada minuto que respiramos. Fico pensando em quantas coisas que eu considerava tão importantes ou relevantes e que no fim, acabaram virando só mais um lixo pro meu cérebro.
Às vezes esqueço se aquela história “ponto crucial” da minha existência já foi contada àqueles mais próximos de mim. Será que estou me repetindo? Ah, se a pessoa for próxima talvez ela já saiba essa, e às vezes descubro que não, nunca contei aquele ponto chave do plot da minha novela. Em outros momentos lembro de coisas aleatórias. Um momento com uma pessoa que não faz parte da minha vida faz anos. Meu primeiro vizinho quando fui morar solo, um surubeiro que era super acolhedor comigo mas que sequer lembro seu nome e seu rosto. Me pego pensando em alguns episódios e me pergunto hoje, (na época não porque não tinha maturidade e terapia em dia) em como a outra pessoa daquele outro lado, viu/interpretou/viveu aquilo. Minha memória só pode ser construída a partir do meu ponto de vista. E é possível que ela minta pra mim. Nosso cérebro mente o tempo todo pra nos proteger. Sua ansiedade mente pra você e te machuca. Será que meu cérebro continua editando minhas memórias pra me confortar?
Nos poucos momentos que explodo e tenho coragem de confrontar minha avó, mostro pra ela algumas de suas falas e ações que me machucaram, me prejudicaram e me fizeram decidir estar o mais longe possível para sempre. A resposta dela é sempre a mesma. “Nossa, mas eu não lembro disso”. Essa é sua resposta hoje, ontem, cinco, dez, quinze anos atrás. Ela escolhe esquecer pois na história dela, na memória dela, ela é a heroína coitada sofredora injustiçada que sempre só quis fazer o bem. Não adianta eu repetir os fatos e falar que minha memória é ótima. É um trabalho de convencimento que não vale a pena ser feito, não agora.
Hoje eu tenho uma boa memória, apesar da limpeza de espaço inerente de todo ser humano. Não sei se vai ser boa pra sempre. Então refleti quais são as coisas que não quero esquecer. As pequenas que parecem não ser lá grande coisa, porque as grandes (como a bela rancorosa que sou) tenho certeza de que me acompanharão até quando meu cérebro e minha saúde permitirem.
Não quero esquecer da criança feliz que eu fui. Que brincava sozinha. Que era player 1 e player 2 ao mesmo tempo. Foi a única época que eu amei minha família (e isso eu às vezes esqueço).
Não quero esquecer de como o cinema, a literatura e as séries me abriram a cabeça pra muita coisa. Mesmo parecendo uma época quase depressiva e de isolamento, a Natália que passava as férias toda vendo 5 filmes por dia sentiu que aproveitou. Sinto falta de consumir coisas que durante, sinto que estou aproveitando.
Não quero esquecer de tudo que desejei com toda fibra do meu ser e consegui alcançar mesmo depois de tanto sofrimento. Mesmo que não foi na hora que eu quis. Não posso esquecer que eu sou uma pessoa de ação e que por pior que estejam as coisas, eu nunca parei até que as mudanças na minha vida acontecessem. Eu preciso continuar dando um jeito, mesmo que leve tempo. Não posso esquecer que nada é pra sempre.
Não posso esquecer que quem dá sentido às minhas memórias e vivências sou eu, não os outros.
Não posso esquecer que também é necessário lembrar daquilo que dói. Que a dor faz parte mas ela não é o todo, e ela não é o fim.
Não posso esquecer que do futuro ninguém sabe, que tudo o que eu tenho é o presente. Se eu não faço hoje, eu não colho os frutos lá na frente. Hoje.
Não posso esquecer que eu aprendo, eu me viro, eu consigo. Eu me reinvento, eu sobrevivo.
Não posso esquecer que quando acho que estou sozinha, algumas pessoas me surpreendem. E não posso esquecer que às vezes as que eu mais achava que poderia contar, me abandonaram.
Não posso esquecer que a vida é curta. As coisas mudam e acabam muito rápido. Não posso esquecer de viver e que isso não significa só trabalhar, juntar dinheiro e pagar conta.
Não posso esquecer do que me faz eu. Não posso esquecer de onde quero chegar. Não posso esquecer de fazer por mim para que eu não esqueça lá na frente de quem eu sou. De quem fui.
Que a minha memória não seja cruel comigo. Que ela não me iluda. Que eu me lembre. Não esqueça, pra poder continuar.
Será que a Natália do futuro vai esquecer que já teve uma newsletter e falava sozinha na internet?
Comecei a semana com Paradise onde num futuro as pessoas literalmente vendem tempo de vida pra pagar dívidas ou, os ricos compram pra manter a juventude. Um homem que faz parte do sistema se rebela contra ele quando sua esposa é injustiçada exatamente com aquilo que ele trabalha. Bons questionamentos, vale o view.
Já Enys Men, é o suco da loucura. Uma voluntária trabalha numa ilha sozinha isolada e começa ter dificuldade de discernir o que é real e o que é um grande pesadelo ou alucinação. Entendo quem não gosta porque é extremamente silencioso e parado, mas eu gosto da temática e gostei desse.
Nic Cage em Sympathy for the Devil interpreta mais um cara surtado que sequestra um homem que estava a beira de presenciar o nascimento da filha. Não tankei a cena de dança e o cabelinho vermelho. Poderia ser melhor mas vale se você gosta do nic.
O deleite da semana foi Joy Ride onde amigas asiáticas americanas viajam para países asiáticos com objetivos diferentes e passam por sentimentos de pertencimento, criar vínculos etc Com um humor maravilhoso. Que elenco de milhões! Vejam!
Outra grata surpresa foi No Hard Feelings. Uma mulher nos seus 30, desesperada para salvar sua casa e sua vida na única realidade que conhece, é contratada para namorar um introvertido antes dele partir pra faculdade. Divertido e fofo. (com nosso novo evan hansen)
Influenciada indiretamente pela Michele, assisti Cléo de cinq à sept onde uma mulher em Paris nos anos 60, aguarda o resultado de uma biópsia enquanto vive suas outras questões. Tem tantos momentos memoráveis, que só posso dizer: assistam! Belíssimo. Amém Agnès Varda.
Já tinha lido Red, White & Royal Blue e foi uma boa adaptação. Direto ao ponto, o filho da presidente dos EUA (uma thurman, eu votaria sim) se apaixona pelo príncipe da Inglaterra. Se tem protagonismo bissexual e o amor LGBTQIA+ vencendo, CONTE COMIGO PARA TUDO.
Terminei a primeira temporada de American Horror Stories e gostei do formato curtas de episódios independentes. O Ryan Murphy tem esse poder de tirar horas da minha vida pra eu assistir suas obras.
Também assisti a terceira temporada de Righteous Gemstones e é praticamente o Succession da comédia. Bem escrachado, talvez você odeie. Mas a tiração de sarro de tudo aquilo que eu desprezo me faz dar gostosas risadas.
Gosto muito de interação por comentários e respostas diretas por email ou inbox nas redes.
Se você acompanha e gosta da Pãozinho de Capivara, considere apoiar com uma gorjeta, por aqui ou me pague um cafézinho pelo kofi!
Se me achar legal e quiser me acompanhar em outros lugares, você pode me encontrar aqui!
Se é pra falar desse tópico, é mandatório assistir The Father, com Anthony Hopkins e Olivia Colman. É meio que o ponto de vista de uma pessoa com alzheimer, mas é mais sobre como ela experiência isso, enfim
Filme foda pra caralho