Essa semana eu consumi duas obras que só acenderam a minha incredulidade sobre como homens não sabem criar personagens mulheres em suas obras. E isso é um fato que vem acontecendo a tanto tempo que mostra que ninguém aprendeu com os erros do passado. Afinal, homens. Eles não precisam aprender porque são o que são, né?
O padrão do que consumi essa semana mostra dois tipos únicos e exclusivos de personalidades femininas escritas por homens: a sensual e a sonsa. E às vezes uma mesma mulher pode ser as duas.
A sonsa é aquela mulher inocente, bobinha. A existência dela na trama geralmente gira em torno do homem. Ou ela está ali pra arruinar a vida do personagem principal ou para salvá-lo (às vezes, também os dois). Ela não entende porque ele é assim, mas o ama de qualquer jeito. Se a sonsa for mãe e seu maior sonho for constituir uma família, melhor ainda. Ela é enganada desde o começo, a partir do momento da conquista até depois que algum plot desinteressante do seu homem passar. Mesmo ele errando, a sonsa acredita nas mentiras do seu amor e está disposta a perdoá-lo, tudo em nome do amor e da felicidade. Sem ele, ela não pode existir. Sem ele, ela não QUER existir. Ela sofre, chora, faz ameaças sem firmeza mas continua ali. Geralmente sua aparência é belíssima. Usa roupas conservadoras, exala uma inocência quase infantil. A sonsa não tem muito a dizer. Ela não tem gostos próprios, uma história, um objetivo e ambição. Se não for pra abrir a boca e falar do seu macho ou da sua família, talvez saia algo extremamente superficial. Mas se a sonsa não falar e ser apenas uma figurante, melhor. Mais passiva que ela, nem duas de si.
Já a sensual, é misteriosa. Provavelmente com suas roupas vermelhas ou pretas que contornam sua silhueta e um batom vermelho marcante, a sensual chama a atenção de longe. Mas ela não consegue passar de um mero objeto de desejo. A sensual geralmente não tem muito a ganhar nas suas histórias. Ela existe como uma tentação. Ela vem pra arruinar a vida do protagonista ou impulsioná-lo a valorizar o que realmente importa (a família e o amor da sonsa). Se souber que ele é casado não se importa, mas quase não faz questão de perguntar. Talvez a sensual nem tenha um nome e mais uma vez, muito menos uma história. Ela é resumida ao seu corpo e sua aparência super instigante. O protagonista PRECISA possuí-la. Beijá-la a força. De preferência é de bom tom mostrá-la nua ou focar em partes do seu corpo como um objeto ou carne na vitrine do açougue. A participação da sensual será breve. Misteriosa ela aparece, misteriosa ela se vai. No máximo ela volta para mais um episódio de tentação, mostrando o quanto agora é ela quem deseja ardentemente o protagonista. Ou quem sabe até deseja virar uma sonsa por ele.
Eu e minha amiga cult Michelle, fomos assistir Fellini no CineSesc. Ele mesmo Federico mestre do cinema italiano. Muitos dos diretores que você ama provavelmente já o citaram como uma grande inspiração. “Os Boas Vidas” (1953) é o terceiro filme do diretor e o que assistimos na telona. Nele um grupo de amigos, todos homens adultos entre 20-30 anos, passam a vida no bem bom. Ninguém trabalha. Um bando de marmanjo sustentados pelos pais tendo a liberdade de serem eternos meninos perseguindo o prazer da vida e mulheres. São eternos meninos hedonistas. Um desses amigos engravida a irmã de um outro deles e é obrigado a casar e arrumar um emprego. É claro que ela é uma sonsa clássica. Ela é traída, desprezada mas morre de amores por seu cafajeste. Apesar de chorar a noite sozinha na cama esperando ele voltar das amantes, se perguntarem pra ela, dirá que nunca foi tão feliz na vida com seu amor. Seu marido Fausto (eita nominho simbólico pra trama) também cai em tentação por uma sensual. Sentado entre ela e a sonsa, ele começa a flertá-la e a persegue para fora do cinema, abandonando sua esposa para beijar loucamente uma desconhecida. O filme não é ruim, existem outras questões a serem abordadas e refletidas, e esse comportamento hedonista é um dos pontos principais a ser colocado em perspectiva. O diretor questiona essa falta de ambição, o fugir do conformismo mas sem perseguir nada. O quanto uma vida repetitiva de uma perspectiva fora do padrão e em busca só daquilo que lhe apetece também pode ser tediosa e vazia. Mas as personagens femininas aqui, não se salvam. Você quer lá chacoalhar todo mundo e gritar ACORDA MULHER VOCÊ NÃO PRECISA DISSO.
No mesmo dia eu tinha acabado de ler Estrada da Noite (2007) do Joe Hill. Demorei muito pra acabar, foi muito difícil pra eu engolir. Tinha uma expectativa pelo anjo ser filho do reizinho do horror (Stephen King) e já tinha lido uma outra obra dele que gostei muito. Pra um cenário mais atual, na história acompanhamos um rockeiro famoso beirando os 60 anos, que pra manter a imagem de “omg he’s so crazy” e diferentão, decide comprar um fantasma. E aí o fantasma era padrasto de uma ex-namorada dele, que se matou e, começa assombrar e aterrorizar sua vida e de sua nova companheira. O que me irritou profundamente, além do protagonista ser um escroto do caralho, foi a maneira que todas as personagens mulheres foram construídas. De 6 mulheres que aparecem ao longo da história, 4 sofreram ab*so s*xual. Uma sofreu um luto traumatizante. E a outra era apenas uma servente de outro personagem homem. Aqui nosso protagonista só se relaciona com mulheres de 20 anos. Todas são uma mistura de sonsa com sensual. Fãs branquelas, de barriga lisa e que fodem como atrizes pornô. Com piercings, tatuagens e que não trabalham ou não tem nada mais a fazer na vida do que seguir uma banda de rock. Mas que assim que começam mostrar que são além de um objeto, são descartadas e logo ele encontra uma próxima no mesmo padrão. Inclusive aquelas que consistem em pares românticos não são chamadas pelo nome. Todas as mulheres que o protagonista transa são diferenciadas pelo estado onde moram. Além de sensuais aqui elas representam um tipo moderno de sonsa. São as sensuais que escolhem viver com esse protagonista grotesco porque no fundo enxergam um potencial nele. Ele é escroto mas no fundo é uma boa pessoa. Ele é escroto mas pode mudar um dia. E mesmo ele sendo escroto, elas estão dispostas a inclusive dar a própria vida (literalmente) para salvá-lo. Enfim achei uma leitura horrível, e cada personagem mulher é criada e escrita da pior maneira possível. Alguns dirão que foi proposital pela trama, mas nem comprar essa briga hoje porque não sou obrigada.
Esses são dois exemplos que eu consumi no mesmo dia. De décadas de separação. Entre um e outro (e além) quantas mais obras continuam perpetuando esse estereótipo? E claro, eu adoraria que isso ficasse só na literatura e no cinema. Mas não é isso que norteia a maioria dos homens da vida real? É bom ter uma sonsa pela estabilidade e uma sensual para as aventuras?
Homens não sabem escrever mulheres. Não sabem construir mulheres. Porque homens não ouvem mulheres. Não consomem mulheres. Não se interessam por ir a fundo, estudar, aprender e apoiar mulheres. O que é conveniente para os homens é continuar perpetuando esses dois tropos. É cômodo. Alimenta o machismo e deixa as mulheres “no lugar delas”. Eles são quem dominam o mundo e o mercado, então são eles que ditam como as mulheres devem ser. Para que mulheres que os consomem possam entender a mensagem e viver para trazer para vida real, essas personagens.
O tempo passa rápido, mas a evolução é lenta. O meu remédio tem sido consumir cada vez mais obras escritas, dirigidas, criadas por mulheres. É bom se ver ali. Ver a pluralidade e personagens com personalidades mais realistas.
Me conta você qual obra você lembrou ou pensou logo de cara que tem escancaradamente a sonsa e a sensual como base de personagem feminina! E se puder, indica uma mina foda que cria personagens foda também :)
Achei divertidíssimo e num ritmo bem estruturado o Bad Times at the El Royale. No começo dos anos 70, sete estranhos (cada um com seu segredo) se encontram no El Royale, um motel de beira de estrada meio creepy e coisas acontecem. Pra quem gosta de mistério e plot twist, uma boa pedida!
Estava ansiosa por The Blackening e não me decepcionei! Um grupo de amigos negros se reunem numa cabana no meio do mato e ficam presos com um assassino numa sucessão de eventos bizarros. É uma sátira não só ao gênero do horror/slasher com pitadas de crítica social. Gostei muito. (lembrei muito de scream)
Faz um tempo que li Lord of the Flies e lembro que na época me impactou, resolvi ver a adaptação de 63 (tem outras). Um avião cheio de crianças cai numa ilha deserta, e sem nenhum adulto, eles precisam se organizar e sobreviver. Crianças tentando criar uma sociedade funcional traz várias questões filosóficas a tona né. Esse é bem datado, mas vale o view. Ouvi boatos de que Luca Guadagnino vai fazer uma adaptação, espero que seja verdade.
A grata surpresa da semana foi Animal Cordial. O dono de um restaurante meio escrotão acaba se revelando fora da casinha quando dois assaltantes invadem o local perto da hora de fechar. Os próprios criminosos, clientes e funcionários acabam virando reféns. Um novo favorito brasileiro, impecável!
Terminei a terceira temporada de Ted Lasso com quentinho no coração e um vazio. Pra quem não dá nada pra uma série “sobre futebol” (spoiler: não é o foco), pode se surpreender. Adoraria que Rebecca fosse minha chefe e pisasse em mim de traje social e salto.
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