A cozinha da minha avó era um espaço enigmático e dicotômico. Os armários presentes do chão ao teto nas três paredes a deixavam imponente. Como se guardasse grandes segredos que só minha avó era portadora das respostas de seus enigmas. Ao mesmo tempo era claustrofóbica, onde no seu centro, havia uma pequena mesa com três banquinhos de madeira. Como quem diz: não é um espaço para todo mundo. Faça o que é preciso e vá embora.
Do lado da geladeira havia um freezer típico anos 90. Marrom combinando com as cores neutras de todos os outros pontos chave do espaço. Quando criança me parecia grande o suficiente e eu pensava que caberia todinha ali dentro. Mas nunca me aventurei em testar, me parecia palpável que se ali entrasse, ali eu ficaria. Seria tarde demais até minha avó se dar conta da minha falta. Ou o lugar perfeito pra me manter caso se cansasse de me criar.
O sol iluminava todo espaço pela porta de vidro. O calor que vinha de fora se misturava com os preparos no forno de dentro. Bolos, pães, pudins. Quase sempre doces. Um elemento para disfarçar a amargura de quem os preparava. Incluindo todas as frutas da fruteira, que eram de plástico. Falsas, mais uma vez para imitar a vida de um comercial de margarina que nunca existiu.
Com meus cachinhos dourados, mas sem gosto por mingau, pedi para participar desse processo. Para também sentir esse calor. Mas logo a resposta vinha como o piso frio marrom e sem graça. Se eu não soubesse o que fazer, erraria tudo. Causaria estrago. Estaria importunando e dando mais trabalho. Cozinha não era lugar para desperdício.
Mas o desperdício era palpável. Em suas diversas portas de tamanhos planejados, muita coisa vencida estava ali para preencher espaço. Minha avó é uma pessoa de exageros. Suas viagens ao mercado duravam quatro horas e suas compras vinham em valores exorbitantes. Se pensasse em comprar um pacote de bolacha, levava logo cinco. Apenas um era aberto. E muitas vezes encontrava o caminho do lixo, pois seu conteúdo murchava. Os outros pacotes aguardam sua vez ansiosos. A maioria deles não veria novamente a luz do sol, uma saída do abafado armário de madeira para o breu aterrorizante do saco de lixo.
Todo seu exagero em coisas era uma estratégia de compensação para tudo aquilo que faltava nas suas relações. Ou pelo menos na sua relação comigo. Até seu café era doce demais. E ela nem gostava de café.
Os anos foram deixando a cozinha mais fria. O fogão quase não mais trabalhava. O congelador se enchia daquilo que era rápido e fácil, para tapar nossos buracos do estômago. Nunca fizemos jantares e almoços em família. Não cozinhamos para as visitas. Cada uma comia no seu horário. Antes era “o almoço está pronto vai se servir” e depois passou a ser “esse negócio na pia está sendo descongelado porque você vai comer?”.
Um dia resolvi fazer um brownie. Fui vigiada a cada passo. Julgada. Recebi palpites não solicitados. Eu deveria seguir regras que sequer estavam na minha receita. Lavei os utensílios. O brownie ficou inteiro pra mim. Nunca mais tentei nada ali. O dia parecia mais escuro. O ambiente mais frio. Eu não pertencia. Foi um teste no qual eu não passei.
Não entendia como, cada vez mais, ela enchia a cozinha com objetos iguais porém diferentes, e que nunca eram utilizados. Quatro jogos de panela e usava sempre a mesma velha, descascada. Novos jogos de prato, e a mesa só via o mesmo pirex transparente ou amarronzado. A cozinha foi morrendo aos poucos ao mesmo tempo que se enchia de novos objetos. Mas objetos não têm vida. Assim como a comida ali guardada. Assim como as horas que passavam no relógio de gatinhos pendurado em cima da porta. Minha avó nunca gostou e nunca quis ter gatos.
Um lugar que deveria servir de comunhão também era campo de batalha. Meus passos silenciosos pareciam ecoar pela casa toda. O que sumonava a velha e lá vinha ela julgar o que estava comendo. Comentar sobre meu corpo. Fazer previsões do meu futuro baseadas no meu peso. Em momentos eu comia pouco demais, mas se escolhia comer seu pudim, era por conta das porcarias que eu me tornaria imensa. Era no silêncio e escuridão da madrugada que eu recorria a cozinha, pra ter um momento de paz com o que ela tinha a oferecer.
Em meio a tanta cor neutra, ar gelado e piso frio, dois jogos de faca decoravam a pia. Um florido e outro colorido. Me parecia um engraçado, os itens mais vivos ali são aqueles que cortam. Que fazem sangrar. Que podem tirar uma vida. Essas facas nunca foram usadas, em teoria.
Minha avó é como suas facas. Atrativa aos olhos das intenções. Afiada nas palavras e ações. Por mais que sua estampa seja inocente, sua função é me fazer sangrar. Meus pedaços foram arrancados aos poucos. Já eu, fui aos poucos me tornando como sua cozinha, fria e sem graça. Porém com as portas dos armários abertas e seu interior vazio.
Longe de sua cozinha, hoje utilizo uma que também não é minha. Seu espaço é menor mas é cheio de luz. Recebo os amigos, deixo-os participarem no processo da partilha. Podem sujar o que quiser, eu limpo depois. Me arrisco a fazer um prato e outro de vez em quando. Meus utensílios são vermelhos. Meus armários não lotam. Marrom nunca foi minha cor favorita.
Este foi um texto que preparei como projeto final de um curso de contos. Pra treinar minha escrita resolvi compartilhar aqui. Aceito feedbacks. Se for bem recebido posso tentar fazer mais edições com contos curtos. Beijo
Comecei Book Club: The Next Chapter sem me atentar ao título que era filme sequência de um primeiro que não assisti. Quatro amigas de um clube do livro viajam pra Itália como despedida de solteira de uma delas. Um elenco bem gostosinho pra quem curte temática de amigas 50+ (eu não gosto de véio, nem de novinho, mas Andy Garcia gostoso demais ainda como que pode)
Na vibe mistério de Hitchcock vi I Confess. Onde depois de receber uma confissão de assassinato, um padre acaba se envolvendo e se tornando suspeito e gasp! Poderia ser melhor.
Na vibe anos 90 fui de Flatliners e muito prazer aos olhos também. Estudantes de medicina decidem descobrir se existe vida após a morte, fazendo experimentos com eles mesmos. Gostosinho de ver.
A grande surpresa da semana foi The Lure. Um terror musical polonês com sereias que acabam trabalhando numa casa noturna enquanto uma delas se apaixona por um muleque tonto. Bom demais.
Também grata surpresa foi com Bones and All, que eu achava que era só mais um romancinho adolescente mas rapaz… Uma moça abandonada pelo seu pai decide cair na estrada pra encontrar a mãe e no meio do caminho conhece um jovem meio creepy e coisas acontecem. Não vou falar mais nada pra não estragar o plot, mas vale a pena demais!
Vi a série e o filme de Looking em homenagem ao mês do orgulho. Uma série muito gostosinha sobre três amigos gays vivendo em São Francisco e suas decisões, dúvidas e angústias. Curtinha, vale a pena.
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Obrigada por ler mais uma edição!
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